Ana K. Rodrigues nasceu no Sul de Minas Gerais, fez faculdade em Bauru, no interior paulista, e passou a maior parte da vida em São Paulo. É jornalista pela Unesp, mestre em Multimeios pela Unicamp e especialista em Literatura Ibero-americana pela Universidad Complutense de Madrid. É apaixonada pela cultura e história da América Latina e há quase dois anos vive no Panamá, onde trabalha como redatora, editora e tradutora freelancer
O que você sabe sobre o Panamá? Provavelmente, o mesmo que eu antes de me mudar para cá: que é um país pequeno, localizado em um istmo entre os oceanos Pacífico e Atlântico, com um canal que separa a ambos e movimenta a economia local. É também lembrado como um grande centro de lavagem de dinheiro do narcotráfico da região. A investigação internacional Panamá Papers destapou uma caixa de pandora que além de incluir isso, também cita empresas fantasmas, propinas múltiplas a membros do governo e do judiciário, o que também contribuiu para a má fama do pequeno país.
Em quase 20 anos, o Panamá é o país que mais cresce na América Latina (5,5%, em 2017) desde que o canal, antes administrado pelos norte-americanos (que o construíram em 1913) voltaram às suas mãos, em 2000. O país já foi apontado como “a Dubai Latino-americana”, pelo skyline formado por edifícios altíssimos e de arquitetura de gosto duvidoso, e também por atrair empresas.
Há dez anos houve uma redução na carga tributária para empresas multinacionais que quisessem se instalar aqui, o que fez com que Samsung, Adidas, Maersk, Nestlé, Dell e dezenas de outras trouxessem seus escritórios regionais para cá. A força do dinheiro é implacável, como a desigualdade social. De acordo com a Organização das Nações Unidas, quatro entre dez habitantes do país de 4 milhões de habitantes vive em situação de pobreza extrema.
Há exatamente um ano e sete meses viemos morar aqui. O motivo desta mudança drástica foi que a multinacional alemã na qual meu marido trabalhava em São Paulo centralizou grande parte de suas operações aqui, na capital panamenha, Ciudad de Panamá.
Confesso que não tive a melhor das recepções quando ele chegou em casa me contando sobre esta proposta, demorada e pacientemente. Meu primeiro pensamento foi “que raios eu vou fazer no meio do nada, lá na América Central?” E naquele já distante momento eu notei que sabia bem pouco sobre esta parte do continente, e menos ainda sobre este país onde temporariamente fincaríamos nossa âncora.
A farsa da América Latina
Mesmo que nos digamos latino-americanos, nós brasileiros sabemos bem pouco dos nossos países vizinhos, além do que aprendemos em férias regadas a vinho, carne e doce de leite no Uruguai, na Argentina e no Chile. Muitos dos nossos compatriotas também já estiveram em praias do Caribe que foram colônias espanholas, como Cuba (já fui mandada para lá milhares de vezes, mas ainda não conheço)e República Dominicana. A Venezuela, que há muito tempo era vista com desconfiança em nosso país, agora se tornou alvo de ódio da extrema direita e vítima de xenófobos que não querem a presença de refugiados desta origem em solo brasileiro.
A existência ou não de uma América Latina é tema de diversos estudos, mas é importante lembrar que esta foi uma nomenclatura criada por sociólogos e economistas europeus, que não sabiam como nomear aquele bloco de país tão parecidos, mas tão diferentes.
Essas diferenças são tão grandes que afundaram a Gran Colômbia, o projeto de “um país gigante” criado por Simón Bolívar (um dos personagens mais importantes da história da América Latina, mas tomado como figura maldita entre apoiadores da direita em todo o bloco), que reunia Equador, Colômbia, Panamá e Venezuela. As semelhanças culturais entre os três últimos é grande, mas os interesses econômicos, políticos e os egos eram tão gigantescos que o projeto durou apenas 10 anos (de 1819 a 1829).
Quintais dos Estados Unidos, infelizmente
Mas falemos da América Central, que naquela tarde chuvosa de novembro de 2016 fui perceber que pouco sabia sobre. No Brasil, a gente estuda na escola muito por cima o que foi o domínio norte-americano aqui. O que foram as guerras civis em El Salvador, na Nicarágua e em Honduras, todas acontecidas ao final dos 70 e início dos anos 80.
Tampouco ficamos sabendo que o bloco central também já foi um só país, a República Federal da América Central, que abarcava Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua e Costa Rica. Como a Gran Colômbia, também fracassou, apesar de ter tido uma sobrevida maior (16 anos, entre 1823 e 1839).
O “Destino Manifesto”, a assustadora crença que os colonizadores ingleses plantaram nos Estados Unidos de que todo território americano lhe deveria pertencer (pensamento que infelizmente se mantém até hoje) deu o tom da história da América Central, fazendo com que esses países se tornassem grandes quintais gringos.
Essa sanha quase religiosa em intervir e dominar aqueles países fomentou uma constante situação de crise e dependência, que se reflete hoje nas estatísticas: milhares de pessoas de origem hondurenha, nicaraguense, guatemalteca e salvadorenha (não, Mister Trump, não são todos mexicanos) que, sem alternativas em seus países corroídos pela violência e a pobreza, buscam nova vida no lugar que um dia o dominou. E estão sendo mandados de volta, por um governo intolerante e ignorante.
Síndrome de Estocolmo
No caso do Panamá, que tecnicamente não é considerado membro da América Central, mas para efeitos práticos o é, tomei um grande choque quando cheguei e o conheci. Antes de virmos li tudo o que podia sobre a história, a política, a cultura e a economia locais.
Meu marido, que já tinha vindo para cá várias vezes por motivos de trabalho, sempre compartilhava suas impressões comigo, e elas não eram das melhores. Ao chegar me impressionei ao perceber que minha família passaria pelo menos três anos em um lugar em que o american way of life era copiado ao máximo: SUV’s por todos os lados, condomínios parecidos a outros comuns em cidades da Flórida e um espanhol pontilhado por expressões em inglês. Aqui entendi na prática o que é o spanglish, uma mescla do idioma anglo-saxão com o espanhol.
Passei meses odiando estar aqui, sentindo falta de coisas simples que eu fazia em São Paulo, como andar de metrô (aqui transporte público é um tema complicado, e como em outros países ditos latino-americanos, é visto como “coisa de pobre”) ou ir ao cinema para ver algo que não fosse um enlatado americano, ou uma exposição interessante. Mas também tentei me abrir e conhecer melhor este país de gente calada e orgulhosa, que foge daquele estereótipo de povo latino caloroso e festivo.
E descobri muitas coisas, ruins e boas. O culto aos norte-americanos ainda tem cheiro de Síndrome de Estocolmo, aquela situação em que o refém se afeiçoa pelo sequestrador. Além da invasão norte-americana em 1989, que foi motivada pela prisão do general Manuel Noriega, que governava o país à época e tinha negócios com o narcotráfico, houve também o caso do canal.
Sem dúvida uma das obras de engenharia mais impressionantes do mundo, o Canal do Panamá foi construído pelos norte-americanos, que ajudaram o país a se libertar da Colômbia (depois de ser uma colônia espanhola independente, o Panamá se tornou uma província colombiana), em 1903. Como contrapartida por haver “dado este presente” para o país, os norte-americanos ganharam a concessão eterna do local. Esta situação só mudou em 1977, quando um acordo entre os dois países estabeleceu que, ao final de 1999, o canal voltaria às mãos panamenhos.
Durante o domínio norte-americano, a cidade do Panamá foi dividida entre a zona do canal (onde viviam e trabalhavam os profissionais gringos) e o resto da cidade. Panamenhos precisavam apresentar passaporte para chegar a alguns bairros. E houve uma série de batalhas e disputas territoriais na capital nos anos 1960 e 1970, inclusive com mortes.
Por isso tudo, ainda não houve nada que me explicasse o porquê de ao invés de odiar os norte-americanos, os panamenhos os copiam. Há pouca literatura sobre, como se o tema fosse um tabu, e pouca discussão em nível universitário e acadêmico sobre o impacto disso na cultura panamenha.
Foi aí que em conversas com gente daqui e lendo coisas aqui e acolá que entendi que o spanglish falado aqui não tinha raízes apenas norte-americanas, mas também estava relacionada aos milhares de trabalhadores que vieram das Antilhas Britânicas (jamaicanos, barbadenses e bahamenses, em sua maioria) também deixaram sua marca.
Grande parte da cultura negra panamenha atual (música, moda, cinema e literatura) é resultado da mescla entre os costumes locais, herança dos colonizadores espanholes e invasores norte-americanos, além dos de centenas de imigrantes que fizeram parte da construção do Canal.
Pouco a pouco fui explorando a cidade fora dos bairros de classe média e média alta onde vivem, em sua maioria, expatriados como a minha família. Muitas destas pessoas jamais cruzaram a cidade e viram o nível altíssimo de pobreza de suas áreas mais periféricas, preferindo viver numa bolha. Os panamenhos são desconfiados, fechados e não muito abertos a estrangeiros, muito por seu histórico. Demorei a fazer amizades por aqui, que ainda são poucas.
Há aqui muitos problemas, muitas perguntas sem resposta (como esta inexplicável devoção a quem dominou o país por tanto tempo), mas também muita coisa interessante para se aprender por aqui. Ainda não me sinto 100% em casa e creio que em país nenhum que não seja o nosso existe este sentimento de pertencimento incontestável. Ainda sofro pela falta da família, dos amigos, da vida cultural e intelectual de São Paulo. Mas não me pergunto mais o que estou fazendo aqui: estou vivendo e aprendendo ao máximo que eu puder.